promiscuidade e perversão
Depois do despacho que ficará para a história como "o das 27 perguntas", o caso Freeport brindou-nos com mais uma estreia mundial: um jornalista que é assistente de processo para escrever sobre o mesmo.
E que depois de escrever sobre o mesmo sem em parte alguma ele ou o jornal assinalarem o seu/deles estatuto no processo, se vem explicar - após ter sido denunciado pela advogada dos dois arguidos -: que não se fez assistente para se "tornar parte interessada na investigação, para contribuir com informações, requerimentos de diligências ou com uma acusação particular" (ou seja, aquilo que a lei diz, nos artigos 68.º a 70.º do Código de Processo Penal, serem as competências dos assistentes, cuja definição é a de "colaboradores do Ministério Público") mas para "informar prontamente os leitores do Público". Ou seja:
o jornal e o jornalista contrataram advogado (obrigatório) e constituíram-se parte num processo para o noticiarem em primeira mão, obtendo assim vantagem informativa e comercial em relação à concorrência.
É certo que a lei diz que em certo tipo de processos qualquer pessoa pode ser assistente, mas talvez seja inconcebível que depois de um assistente denunciar assim a perversão que está a fazer do seu estatuto - e portanto da justiça - não suceda nada. Como será pelo menos igualmente estranho que nem o jornalista nem o jornal nem as instâncias fiscalizadoras da deontologia se tenham recordado de outra lei, a do Estatuto de Jornalista, que, precisamente, estatui que um jornalista não pode noticiar assuntos em que tenha interesses. Há, já houve ocasião de constatar, quem tenha dificuldade de compreender o que poderão ser estes "interesses" e o que, igualmente importante, não poderão ser.
Mas, por definição, o estatuto de um assistente de um processo - que pode até requerer indemnização - é o de parte interessada, quer o jornalista o admita ou não, e quer se veja ou não como tal. E um assistente que noticie o processo só pode ser visto como uma espécie de agente duplo, uma perversão do sistema judicial e do jornalismo e um símbolo da promiscuidade entre um e outro, por mais que os seus objectivos sejam, como afirma serem, os de obviar àquilo que caracteriza como "esquemas promíscuos" - e até por isso.
Quando se chega a este ponto é preciso perceber que temos de pensar tudo outra vez - ou melhor, pensar tudo do princípio. A não ser que nos habituemos, como jornalistas e cidadãos, à ideia de que vale tudo. Mesmo tudo.
por: Fernanda Câncio.
http://jugular.blogs.sapo.pt/
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