quinta-feira, 22 de abril de 2010

Laico arcaico

Viver num Estado laico significa uma coisa muito simples, aliás explicitada pelo primeiro-ministro há um mês, em declarações aquando da cerimónia dos 25 anos da mesquita de Lisboa: "Um princípio fundamental na acção do Governo é o respeito absoluto pela liberdade religiosa e pela neutralidade do Estado face à crença religiosa de cada cidadão." Traduzindo, o Estado laico não se mete em assuntos religiosos.

Sucede que este se mete, e muito. A maior parte das pessoas talvez nunca tenha reparado que o Estado português "reconhece" confissões. A lei da liberdade religiosa, de 2001, estabelece que só confissões radicadas (estruturadas no território nacional há mais de 30 anos ou "no estrangeiro" há mais de 60) ou "inscritas" beneficiam de devolução do IVA e podem ser incluídas na listagem das entidades beneficiárias da consignação de 0,5% do IRS dos contribuintes e isentas de pagamento de IMI no que respeita a edifícios de culto, aceder ao contingente de professores de Religião e Moral, participar na Comissão de Liberdade Religiosa e celebrar casamentos com efeitos civis. Acresce que mesmo entre as confissões reconhecidas o Estado estabelece distinções. Há a Igreja Católica (IC) e há "as outras". E de tal modo assim é que com esta, na sua forma "estatal" - esse "país" chamado Vaticano, ou, para quem creia, "Santa Sé"-, o Estado até faz tratados. Que consistem em duas coisas: assumir os seus próprios cidadãos como súbditos do outro Estado e atribuir, em consonância, privilégios aos respectivos representantes.

De acordo com esta visão tão neutral "das crenças religiosas de cada cidadão" e apesar de uma Constituição que desde 1976 estabelece a separação rigorosa, o Estado mantém símbolos religiosos católicos nas escolas públicas - manutenção que o primeiro Governo de maioria socialista reiterou, desmentindo, logo em 2005, qualquer intenção de os retirar -, atribui nomes católicos a equipamentos (incluindo os que são só projecto, como o futuro hospital lisboeta "De Todos os Santos"), assegura o monopólio da assistência religiosa paga aos católicos (remoçado, ainda que sob disfarce, numa lei de Setembro de 2009) e concede tempo de antena nos media públicos, com dignidade de representantes do Estado, a dignitários católicos.

A atribuição de tolerância de ponto aos funcionários públicos aquando da visita do Papa, que de acordo com notícias publicadas em Março foi "negociada" com a hierarquia da IC portuguesa, é pois apenas mais uma manifestação da peculiar noção que o Estado português - e neste caso o Governo em funções (como de resto a generalidade dos partidos, à excepção tímida do BE) - tem do que significam "princípios fundamentais": é conforme calha. Desta vez, logo por azar (ou sorte?) calhou no ano do centenário da República. Deus não dorme.


Fernanda Câncio

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