A geração parva
Público • Quarta-feira 2 Fevereiro 2011
Há mais ou menos dezoito anos, um editorial deste jornal teve a ideia de chamar
“geração rasca” aos jovens que na altura tinham mais ou menos dezoito anos. A geração
— essa geração, a minha — nunca mais conseguiu esquecer. Com toda a ambiguidade, levámos o nome a peito: ficámos ofendidos com ele, um pouco envergonhados sim, muito irritados também, mas fizémo-lo nosso sobretudo, tentando dar-lhe a volta (a “geração à rasca”) às vezes.
Recusámo-nos sempre, sabe-se lá porquê — porque era injusto, digo eu —, a largá-lo. Que o nome era injusto foi-se vendo depois. Na verdade, esta geração, que tem agora o dobro da idade, não foi absolutamente nada rasca.
Pelo contrário, espantanos a nós — e a quem quiser observar — o quão cordatos fomos. Passámos a segunda metade das nossas vidas com esse ferrão do vexame em manifesto silêncio. Ouvimos até à náusea que éramos a “terra queimada” do sistema de ensino — chegámos a repeti-lo nós, por reflexo condicionado — até muito recentemente apenas se ter começado a reconhecer que afinal somos a “geração mais bem preparada” de sempre no país. O que pode não ser difícil, mas não deixa de ser verdade.
E nestes anos todos, de forma passiva, cabisbaixa e rotineira lá fomos aceitando mais um estágio, mais um subemprego, mais uma caderneta de recibos verdes, mais um mês no call center, ou — pior ainda — um telefonema do call center a dizer que afinal não precisamos de ir neste mês nem nos seguintes.
Até que no outro dia, no Coliseu do Porto, a banda do momento, que leva um nome de mocinha de outros tempos — Deolinda — tocou em estreia absoluta uma música cujos versos começam, de mansinho, “sou da geração / sem remuneração”.
Às palavras, claras e bem articuladas, o público que nunca as tinha ouvido reagiu primeiro com uma ligeira gargalhada. A música é também ela falsamente branda e delicada; em três minutos somente veremos que fomos enganados pelas aparências e que ela tem dentro uma raiva cristalina.
As rimas prosaicas, que parecem piadas e na verdade são facas — “isto está mau e vai continuar / já é uma sorte poder estagiar” — vão entrando na carne do público a pouco e pouco. Aqueles que lá estavam e tinham aquela idade — “a geração do vou-queixar-me-pra-quê / há bem pior do que eu na TV” — reconheceram-se ao espelho.
Irónica, muito muito cansada e lamentosa, a vocalista vai repetindo sobre o repenicado das guitarras, “que parva que eu sou”, “que parva que eu sou”. Insultando-se para não insultar o mundo porque afi nal — a coisa menos rasca do mundo — somos
bem educadinhos.
Só quando a rede já está lançada a canção se diz, não vá alguém levar a mal, numa sugestão apenas: “...fico a pensar, que mundo tão parvo / onde para ser escravo / é preciso estudar.” Neste momento, o público estava pasmado.
Na última estrofe — “sou da geração do já-nãoposso- mais / que esta situação dura há tempo demais” — estava conquistado. No fim da canção aplaudiu de pé. Uns estavam arrepiados, outros comovidos. A cantora levantou os dois braços, numa espécie de alívio, como quem fi nalmente disse uma coisa que estava entalada.
Vão ver: alguém filmou, pôs na Internet, partilhou; nasceu um fenómeno. A geração finalmente pôs um nome a si mesma. Pois é, Deolinda: que parvos que somos. Que parvos que fomos. Que parvos que temos sido. Mas ninguém pode ser parvo tanto tempo assim. Vê lá: se mudássemos aqui uma letra, e substituíssemos ali por outra — voilà! — ainda iríamos a tempo de ser a geração brava, não era?
Rui Tavares. Historiador.
Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo BE
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