domingo, 16 de maio de 2010

Andreias q.b.

Rock in Fátima: "O mundo deu a volta"

Por Fernanda Câncio - Martírios, lágrimas, promessas e festival pop. Mas toda a gente vem ao mesmo: sentir qualquer coisa.

Faz sol e chove e faz frio, à vez. Na grande depressão circular que é o recinto de Fátima, Andreia Corvo, 17 anos, óculos escuros enormes, jeans e várias camisolas, alonga- -se num colchão como na praia - como na sua terra, Olhão -, à espera do Papa. "Tenho curiosidade de o ver, a ver se me toca alguma coisa." O quê, Andreia não sabe explicar. "Sou de uma comunidade cristã e perguntaram se queria vir e vim." É a primeira vez em Fátima e sobre o sítio e o seu significado só sorrisos: "Não percebo nada disto, sinceramente." Quanto ao que espera que o Papa diga ou o que ele lhe diz, mais embaraço. "Sinceramente não sei, nunca o ouvi."

A um metro de Andreia, no corredor de pedra lisa que atravessa o recinto até a uma espécie de grande telheiro sobre uma pequena casinha - a chamada Capela das Aparições -, Maria Alice Carvalho Alves Silva, 65 anos, residente em Celorico de Basto, avança lentamente, de joelhos, o rosto fechado para a assistência. É uma das muitas mulheres - não há homens, por acaso ou não - que "pagam" assim um pedido.

Em comum, além do género e da escolha do meio (massacrar as rótulas), o olhar abstracto, às vezes doloroso, em contraste paradoxal com o tumulto que as rodeia e que faz as voluntárias de serviço, freiras e escuteiras, solicitar uma e outra vez às pessoas que se desviem para deixar passar as pagadoras de promessas.

Maria Alice não se protegeu com joelheiras mas chega ao fim de boa disposição e sem queixas. "Vim porque o filho da minha filha foi operado a um tumor maligno no cérebro. Ela trouxe-o a cachaleiro [às cavalitas] dela e deu três voltas, e eu vim também. Acredito muito na Nossa Senhora de Fátima. A gente tem fé que nossa senhora é tudo e pode tudo."

A diferença entre pedir e crer, esperar e aceitar a graça e vir aqui fazer o corredor de joelhos no meio desta multidão é, explica, "o sacrifício". "Se eu não viesse, ela não se importava, claro. Mas eu quero vir. Fátima é o altar do mundo, a terra do silêncio, do sagrado." Silêncio, de momento, não abunda. Maria Alice concorda, critica: "Quando comecei a vir aqui, com 17 anos, não se dava um pio, era um lugar santo. Havia mais gente, mas era diferente. Agora é barulho, é confusão. Há bocadinho ali em cima, cantou-se e fez-se um sacramento e ninguém ligou, tudo deitado no chão. Já não há aquela fé... E cada vez vai ser pior." O desalento e descrença face ao presente e futuro em alguém que acabou de atribuir uma cura milagrosa a uma existência superior que tudo vê, pode e controla parece contradição insanável.

Mas Maria Alice explica: "Deus e Nossa Senhora estão onde estão e vão continuar a estar onde estão, mas as pessoas não cumprem; cada vez as igrejas estão mais vazias, cada vez menos crianças, cada vez mais abortos... Já não há amor, já não há pessoas de coração puro. Nossa Senhora abeirou-se daqueles meninos inocentes para mudar o mundo... Mas o mundo deu a volta. Como não sei, mas cada vez vai ser pior, vai ver." Cada vez pior? Não é suposto ter esperança? "Mas eu tenho esperança."

Chove agora, quando se anuncia a chegada do papamóvel. Gritos de viva o Papa, palmas, gente a subir para banquinhos, para cima de gente, em bicos dos pés.

Maria Amélia Pinto de Barros, portuense de 75 anos, casaco de caxemira, gola de vison, carteira Vuitton e cabelo impecável (é gerente comercial reformada, informa) vem aqui "desde bebé". Porquê? "Sei lá. Talvez porque os meus pais me trouxeram. Sou do tempo em que era tudo lama, e não havia onde ficar, dormíamos no carro. Agora... É quase uma romaria, para não dizer que é mesmo uma romaria." Sorri. "Tenho dito: agora vou ouvir o Papa." Bento XVI lê uma mensagem e dirige-se a seguir, de novo no papamóvel, para o cimo do recinto, para a nova Igreja da Santíssima Trindade.

Lá dentro, espera-o uma assembleia composta sobretudo por religiosos e religiosas. Mas quando o Pontífice entra o templo é um cenário de concerto pop: palmas e gritos, pessoas em pé sobre o espaldares das cadeiras e dezenas de telemóveis ao alto, a filmar e a fotografar.

Não chega contemplar e sentir, parece, nem sequer entre aqueles a quem a seguir o Papa vai falar, na sua voz pausada, agora cada vez mais rouca, às vezes quase inaudível, sobre saber escutar com o coração e dar disso o exemplo.

http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1568628

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