MEMÓRIAS DE UM ADVOGADO
DIREITO POR LINHAS TORTAS
O meu cliente era bom homem, simplório, mas muito cioso do que era seu e dos seus interesses. Tinha havia muitos anos uma pendência com um cunhado, por causa de um terreno comum sobre cuja divisão não conseguiam entender-se, e ele atribuía toda a culpa dessa falta de entendimento ao tal cunhado que, segundo ele, era um malandro, aldrabão e ganancioso.
Baldadas todas as tentativas de acordo amigável, mesmo através de mim e do advogado do cunhado, tornou-se inevitável recorrer a tribunal com uma ação de divisão de coisa comum. Quase no final desse processo, porém, acabou por ser possível, graças à intervenção conciliatória do juiz, chegar a um acordo razoável. Nessa transação ficou estipulado, como é costume, que as custas seriam suportadas a meias por ambas as partes.
Aconteceu no entanto que, por engano do secretário judicial, na conta final do processo foram postas todas as custas a cargo do cunhado do meu cliente. É claro que o advogado deste apresentou reclamação da conta, que tinha todas as condições para ser atendida; porém, tendo este meu colega o seu escritório em comarca diferente daquela em que tinha corrido o processo, a sua secretária, por engano, entregou a reclamação no tribunal dessa outra comarca; e o funcionário que a recebeu não se apercebeu de que ela era dirigida a outro tribunal.
Entretanto, esgotou-se o prazo para a reclamação, pelo que, devido a toda esta sucessão de enganos, o tal cunhado acabou por ter de pagar a totalidade das custas.
O meu colega, sentindo-se indirectamente responsável pelo erro da sua secretária, pediu-me que intercedesse junto do meu cliente para que este, embora sem a isso ser legalmente obrigado, honrasse o compromisso acordado e reembolsasse o cunhado de metade das custas.
Por consideração pelo colega e por achar justa a sua pretensão, convoquei o meu cliente e expliquei-lhe o que tinha acontecido: as custas, conforme o acordado, deveriam ter sido pagas a meias, mas o cunhado tinha tido que as pagar na íntegra devido a uma anómala série de enganos (do secretário judicial, da secretária do meu colega e do funcionário que recebeu a reclamação). E perguntei-lhe se ele, apesar de ninguém a isso o poder obrigar, estaria disposto a cumprir o acordado.
O meu cliente, num primeiro momento, ficou embatucado; era evidente que não tinha vontade de pagar, mas também não queria passar por desonesto. De repente, porém, o seu semblante iluminou-se, os olhos sorriram-lhe e ele sentenciou: “Foi Nosso Senhor que o castigou!”.
E assim, graças a esta invocação da Divina Providência, conseguiu eximir-se airosamente ao cumprimento da palavra dada. Quem éramos nós para contrariar a vontade de Nosso Senhor?
posted by ahp
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