sábado, 15 de maio de 2010

Alegres e contentes

O candidato perante a lama e a exigência dos puros

A declaração acerca do seu passado militar feita pelo cidadão e (bi)candidato presidencial Manuel Alegre só pode causar engulhos a quem mistura ideologia com biografia ou entende que deve ser o estoicismo do silêncio (num género de calar de “puta velha”) a única resposta a uma calúnia mil vezes repetida com o intuito claro de retirar politicamente dividendos do efeito do passado falsificado de quem vai a votos mas que se detesta. Manuel Alegre já confirmou que vai a votos, como alternativa à direita conglomerada em torno da recondução de Cavaco Silva.

Pode não ser o melhor candidato para unir e motivar, à partida, toda a esquerda e o centro-esquerda (o verdadeiro busílis da decisão eleitoral e que antes de dividir o eleitorado divide o PS, amarrado que está partidariamente à sua potente e governamentalista ala centro-direita). E é, seguramente, uma aposta de risco para derrotar Cavaco, mas isso se não se conseguir forçar uma segunda volta (meta difícil mas possível), a qual aplainaria, mesmo semeando sapos, as reticências do dogmatismo e do perfeccionismo personalista.

Mas não há candidatos de proveta. Na esquerda, pela esquerda, foi Alegre que avançou. Felizmente, porque Alegre é um bom candidato, o melhor candidato que, na esquerda plural, se podia apresentar. Tanto mais que, desta vez, o poderoso pólo de centro-direita dentro do PS não tem um “candidato de palha” para confundir as hostes (Nobre foi uma aposta pífia da “ala soarista” que se esgotou no impulso de revanche), obrigando-se a escolher entre Cavaco ou Alegre (sem dúvida que a maioria desta ala prefere a primeira opção, mas sempre restam os que têm boa e crítica memória sobre a fonte de veneno institucional e político que é ter-se Cavaco em Belém).

Resumindo, com todos os seus defeitos e virtudes, nas quais não se pode esquecer a coragem indómita de ir à luta mesmo quando a idade e o desgaste aconselhavam antes que calcasse as pantufas e se dedicasse exclusivamente à escrita (sobretudo à prosa, onde a sua poesia melhor alastra), Alegre é o candidato da esquerda que, neste momento político, é possível unir sem unificar para retirar a direita reaccionária de Belém. Só que numa eleição em que se escolhem pessoas, cada pessoa-candidato, não sendo tudo, é muito. Ela, com o seu presente, os seus projectos, o seu passado.

É falsa a dicotomia redutora que afunila as opções dos mancebos, quando a guerra colonial meteu a juventude portuguesa na fornalha das guerras coloniais, a fazerem a guerra com convicção ou submissão ou, então, desertarem. Houve quem escolhesse uma “terceira via”, a de irem para a guerra e, na guerra, lutarem contra ela.

Cada mancebo português dos anos sessenta e primeira metade da década de setenta, avaliou e escolheu, cada um condicionado por mil constrangimentos pessoais, familiares, culturais, sociais e políticos. Nem todos tinham consciência política, nem todos tinham os mesmos “status” e constrangimentos familiares, nem todos tinham as mesmas acessibilidades e as mesmas capacidades de coragem, apoio e suporte relativamente aos circuitos que permitiam aceder à deserção com exílio com prazo incerto ou mergulho na clandestinidade. Finalmente, nem todos faziam a mesma leitura política sobre a melhor posição de intervenção perante a guerra colonial que se combatia, desertando (isenção individual) ou partilhando a guerra e aí lutando por convicções contrárias a ela (no mínimo, tentando “contaminar” os que lá estavam por profissão, convicção ou submissão, contaminação esta que, no limite, levou ao MFA e ao 25A).

A esta distância, mais que julgar há que compreender que mais que a escolha das vias, eram, na ditadura (e, por isso, não falo sobre a coragem indómita e exemplar dos que desertaram após o 25 de Abril de 1974, os heróis da recusa à guerra colonial já falida), sobretudo as vias que escolhiam as opções. Um mancebo arrancado ao mundo provinciano e só culturalizado pelo patrioteirismo da época, sem acesso a escolhas e inquietações que a censura, a opressão e os costumes inibiam, fazia a guerra com zelo e seguindo os seus cabos de guerra, compensando a dureza dos combates com o gozo da fraternidade do élan da sobrevivência com os seus irmãos de armas. Entre os politizados, sempre uma minoria, uns desertavam (com a honra dessa opção) e outros continuavam, “na guerra”, o seu combate político contra o fascismo e o colonialismo, enquanto cumpriam as suas obrigações incontornáveis de combatentes pela causa errada.

Descarregar juízos sobre as opções dos jovens portugueses colocados perante os dilemas da guerra colonial, é transferir as culpas reais, ou seja, as que cabem quase inteiras sobre os decisores políticos e guerreiros de então, os autênticos “senhores da guerra”, os do fascismo, do colonialismo, da guerra colonial. Manuel Alegre fez a guerra colonial, conspirou nela contra o regime, foi por isso preso e expulso do exército, exilou-se para escapar a nova prisão, continuando no estrangeiro a luta contra o fascismo e o colonialismo.

É a sua história, foram as suas opções perante as “escolhas” que a ditadura lhe proporcionou. Por isso, como qualquer um, tem direito à verdade do seu passado e das suas responsabilidades. Se o salazarismo do boato e da calúnia, o mesmo que espalha e consolida a mentira de Soares a pisar em Londres a bandeira nacional ou que inventa e dá à estampa uma carta falsa de Rosa Coutinho a oferecer Angola a Fidel ou que difunde que Cunhal era dono de um latifúndio alentejano, diz e propaga a mentira de que Alegre foi um “desertor”, Manuel Alegre tem direito à verdade sobre o seu passado.

Foi isso que o cidadão e candidato presidencial Manuel Alegre, acabou de fazer. Pela verdade contra a calúnia. Sem ter questionado outras opções e outras trajectórias. Onde está o problema no exercício da auto-defesa?

Publicado por João Tunes
http://agualisa6.blogs.sapo.pt/

Sem comentários:

Enviar um comentário